A “nossa” MPB

Parece paradoxal o fato de a presente proposta – cuja essência e principal finalidade envolvem um tratamento profundamente objetivo dos dados analíticos – ser desenvolvida sobre um terreno tão fluido e incerto quanto é o contexto da MPB. Como é comentado no capítulo Uma breve discussão sobre estilo musical, a tarefa de estabelecer as fronteiras históricas desse conceito esbarra em inúmeros problemas. A bem da verdade, nem ao menos a pura “existência” da MPB pode ser considerada um fato consensual: não rara é a opinião de que trata-se de um mero constructo cultural, criado num determinado contexto político, com objetivos comerciais. Não, não pretendemos entrar nesses pormenores, muito menos debater questões tão básicas e existencialistas como essa.

Se por um lado, tais indefinições promovem uma certa insegurança sobre o próprio objeto de estudo, por outro, podemos aproveitar justamente dessa inerente fluidez e multiplicidade interpretativa para nos posicionarmos, por assim dizer, de um modo relativamente confortável. Ou seja, propomos aqui neste capítulo o estabelecimento de uma perspectiva particular sobre a MPB, o que nos levará, entre outras coisas, a definir as fronteiras que consideramos adequadas a tal viés: em outros termos, este capítulo apresentará a “nossa” MPB. Enfatizamos aqui que não é, de modo algum, nossa intenção contrariar quaisquer versões distintas e/ou conflitantes sobre o assunto. Muito menos nossa proposta baseia-se em novos elementos, descobertas ou pesquisas acadêmicas especializadas (musicológicas, historiográficas, sociológicas etc.). Trata-se, sim, de uma visão por certo idiossincrática, porém não desprovida de lógica ou desvinculada dos fatos e contextos envolvidos.

Antes de partir propriamente para uma definição, no entanto, vale a pena relembrar alguns pontos levantados na introdução do projeto. Talvez o mais importante deles seja o quão culturalmente compartilhada é a noção do que seria uma composição emepebística: com base no que conhecemos, é possível pensar que uma pessoa que tenha nascido e/ou que vive no Brasil seja razoavelmente capaz de reconhecer informalmente se uma determinada canção, que ouve pela primeira vez, seria ou não “de MPB”, caso essas opções sejam oferecidas. É claro que a maior ou menor eficácia desse “experimento” informal flutuaria de acordo com a época, a idade, os níveis sócio-econômico e de escolaridade da pessoa testada, mas é perfeitamente viável crer que essa noção ainda se mantenha razoavelmente estável em nossa cultura a despeito dessas flutuações, o que denota que, mesmo sem conhecer (ou poder identificar) aspectos específicos estruturais da construção musical dessas peças – em média, claro – sabemos intimamente (ou, pelo menos, temos uma boa ideia de) o que elas têm de diferente em relação às demais músicas, “não-emepebísticas”, enfim.

Outro ponto importante levantado na introdução – e que merece ser aqui retomado – diz respeito à extraordinária diversidade do “meio-ambiente” da MPB, um aspecto notável que contribui para dificultar a definição de suas fronteiras. O nosso subconjunto-alvo (adiantando, sem prejuízo, um termo do próximo capítulo) é um amálgama extremamente amplo de personalidades e estilos composicionais, gêneros musicais e movimentos estéticos, formando um quadro de grande complexidade. Reiteramos, portanto, que a MPB não pode ser chamada de um estilo (é uma combinação de um número incalculável deles), muito menos de um gênero (que convivem, em grande quantidade, harmoniosamente debaixo do “guarda-chuva” emepebístico). O que talvez seja um aspecto inovador de nossa proposta é sustentar que a MPB também não é uma estética ou um movimento: ela abarca estéticas e movimentos que, não necessariamente se alternam; na verdade, também observamos que diversas correntes estéticas, ainda que apresentem maior ou menor proeminência em determinados momentos ao longo do tempo, formam nichos que seguem sem maiores disputas ou conflitos sob o mesmo “teto”.

Essa perspectiva nos leva a uma questão central da proposta, que é o estabelecimento do território de estudo. Afinal, a que período histórico está associada a MPB? Em um excelente e completíssimo livro, Faour (2021) tem o cuidado de, ao se referir à MPB, sempre grafar o termo entre aspas, de modo a diferenciar esse conceito específico do que considera como as Músicas Populares Brasileiras, uma acepção globalizante da produção musical no Brasil, uma tese que de algum modo se assemelha à nossa, ao menos em linhas gerais. Faour dedica um capítulo à descrição pormenorizada de sua “MPB”, circunscrevendo-a na década de 1970 (1970-78, mais precisamente), ainda que implicitamente reconheça sua sobrevida em períodos posteriores.

Nesse viés, a “MPB” de Faour é tratada como um movimento – aqui, portanto, distinguindo-se de nossa visão –, equiparando-se a outros, como a “Era do rádio”, a “Bossa nova”, a “Jovem guarda” etc. Depreende-se de seu texto que o movimento teve sua origem associada ao turbulento contexto político da época, com uma produção marcada, ao menos inicialmente, por canções de protesto e de resistência à ditadura. De acordo com nossa argumentação, entendemos a MPB como uma noção num nível mais elevado em relação aos movimentos e estéticas, o que nos faz considerar seus limites temporais de uma maneira mais flexível.1

Talvez o aspecto mais saliente de nossa ótica se refira justamente à questão que envolve o gênero (ou subgênero, derivado do samba) e/ou a estética da bossa nova. Para nós, a bossa nova integra o subconjunto-alvo da MPB, entre outros membros de mesma magnitude (sejam gêneros, como blues, baião, frevo, samba etc.; sejam estéticas, como a do “Clube da Esquina”, por exemplo) uma opinião que provavelmente fará levantar as sobrancelhas de alguns leitores. Nesse sentido, a obra de Tom Jobim parece nos dar razão. Normalmente identificado como “o principal compositor de bossa nova” (o que não deixa de ser verdade), Jobim raramente é também lembrado por ter composto em um grande número de estéticas e gêneros. De fato, a partir de 1968, com sua obra-prima Sabiá (em coautoria de Chico Buarque), Jobim claramente começou a se distanciar da estética bossanovista (intenção que, aliás, expressou claramente em vários depoimentos). Afinal, faz sentido classificar, por exemplo, Luiza, Passarim, Chovendo na roseira, Matita Perê, entre tantos outros títulos como bossas? Apenas a acomodação às facilidades da rotulação poderia explicar essas imprecisões, que infelizmente se perpetuam na crítica musical e mesmo no meio acadêmico.

Pois bem, a trajetória de Jobim, ou melhor, de seu estilo composicional, é um perfeito representante da ideia que temos sobre os membros do subconjunto MPB e, principalmente, de seu âmbito temporal dentro da música brasileira. Se tomarmos o ano de 1973 como ponto de referência – fazendo uma pertinente alusão a outro ótimo livro recentemente publicado (Albuquerque (2015)) sobre o tema – e traçarmos um círculo com raio de 20 anos, obteremos aproximadamente o período criativo de Jobim, entre 1953 e 1993, abarcando 40 anos de produção composicional. Parece-nos um recorte bastante adequado a nossos propósitos analíticos, especialmente pelo fato de alçar o nosso grande mestre (o maior de todos, sem qualquer dúvida, dentro do riquíssimo universo da música brasileira) à posição privilegiada de eixo sobre o qual se constrói nossa ideia particular sobre o período da Prática Comum da MPB, como sugere a Figura 1:

Figura 1: Limites temporais de nossa proposta sobre o período de Prática comum da MPB, em concordância com a trajetória criativa de Jobim.

Desejamos também deixar claro que mesmo tais limites mais amplos em relação ao que é normalmente entendido como o escopo da MPB não devem ser vistos tão rigidamente. Imaginemos que o grafite de nosso compasso metafórico seja tão macio que torne quase imperceptível os contornos do círculo da Figura 1, fazendo com que compositores atuantes antes de 1953 e depois de 1993 possam também ser considerados. Essa maleabilidade permitiria, por exemplo, abranger várias canções pré-bossanovistas de temática e harmonia sofisticadas, como algumas das composições mencionadas por Ruy Castro em seu seminal livro A noite de meu bem (Castro 2015). Afinal, não teriam Canhoto, Custódio Mesquita, Dorival Caymmi e mesmo Noel Rosa – ao menos, em parte de sua produção – características claramente emepebísticas? De mesmo modo, não continuam a atuar firmemente em seus estilos consolidados craques como João Bosco, Caetano Veloso, Djavan (e etc., etc.) nos dias atuais? E o que dizer de compositores cujas carreiras se desenvolveram especialmente após 1990, como Cazuza, Lenine, Zélia Duncan, Chico César, Zeca Baleiro (dentre vários outros)?

Feita essa importante ressalva, por questões de foco e praticidade, retornemos ao círculo MPB, pois ele é o núcleo do projeto.2 Ainda que pareça limitador, esse recorte compreende um número incalculável de obras que poderiam ser levadas em conta em nossas análises. De modo a tornar exequível a (inerentemente bastante trabalhosa) tarefa que nos dispusemos a empreender, torna-se imprescindível trabalhar com um número de peças ao mesmo tempo representativo e mínimo necessário, o que nos permitirá realizar o processo analítico (em todas suas etapas) num tempo finito e produzir conclusões coerentes e sólidas. Por essas razões, selecionaremos uma quantidade relativamente pequena de obras (diante do universo de possibilidades) de um número também relativamente reduzido de compositores, formando corpora de iguais extensões.3

É importante, por último, acrescentar que a seleção dos 10 compositores que integram a fase inicial da pesquisa resulta da percepção de sua grande relevância dentro do cenário da MPB. Assim como escalações de seleções brasileiras de futebol dificilmente têm a concordância de todos, por certo, cada leitor poderia ter a sua própria lista dos 10 compositores (mesmo que alguns deles possam figurar na maior parte dessas listas) – e é natural que seja assim. Lembramos que outro grupo de 10 será selecionado para a segunda fase e assim por diante. Não temos pressa nem prazos para finalização dessa pesquisa que, a cada rodada, certamente se tornará mais robusta e precisa.

Dito isso, fechando este capítulo, nada mais justo e pertinente do que citar alguns nomes dos habitantes desse extraordinariamente rico mundo da MPB (neste tipo de listagem, é inevitável que tenhamos esquecido de alguns nomes – aos quais, desde já, pedimos sinceras desculpas):4

Compositores(as): Alberto Rosenblit, Alceu Valença, Aluisio Didier, Ângela Ro Ro, Antonio Adolfo, Antonio Carlos, Antonio Carlos Jobim, Antônio Nóbrega, Arnaldo Baptista, Baden Powell, Belchior, Beto Guedes, Biafra, Caetano Veloso, Carlinhos Vergueiro, Carlos Lyra, Cartola, Cátia de França, Célia Vaz, Chico Buarque, Cláudio Nucci, Diana Pequeno, Djavan, Dolores Duran, Dori Caymmi, Ednardo, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Elomar, Fagner, Fátima Guedes, Flávio Venturini, Francis Hime, Geraldo Azevedo, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Guarabyra, Guilherme Arantes, Guinga, Hermeto Pachoal, Hyldon, Ivan Lins, Jards Macalé, Jaime Alem, João Bosco, João Donato, João Ricardo, Jocafi, Johnny Alf, Jorge Benjor, Jorge Mautner, Joyce, Kledir, Kleyton, Lobão, Lô Borges, Luiz Bonfá, Luiz Carlos Sá, Luiz Eça, Luiz Melodia, Lulu Santos, Marcos Sabino, Marcos Valle, Marina Lima, Mario Adnet, Marlui Miranda, Maurício Tapajós, Milton Nascimento, Moacir Santos, Moraes Moreira, Nelson Ângelo, Newton Mendonça, Nonato Buzar, Oswaldo Montenegro, Paulo Sérgio Valle, Paulinho da Viola, Raul Seixas, Rita Lee, Roberto Menescal, Sérgio Mendes, Sérgio Ricardo, Sérgio Sampaio, Sidney Miller, Sivuca, Sueli Costa, Taiguara, Tavinho Moura, Théo de Barros, Tibério Gaspar, Tim Maia, Tom Zé, Toninho Horta, Toquinho, Tunai, Túlio Mourão, Vital Faria, Walter Franco, Xangai, Zé Renato e Zé Rodrix.

Letristas: Abel Silva, Aldir Blanc, Aloysio de Oliveira, Ana Terra, Antônio Cícero, Billy Blanco, Cacaso, Capinam, César Costa Filho, Chico Feitosa, Ezequiel Neves, Fausto Nilo, Fernando Brant, Galvão, Geraldo Carneiro, Gianfrancesco Guarnieri, Hermínio Bello de Carvalho, José Miguel Wisnik, Márcio Borges, Nelson Motta, Paulo César Feital, Paulo César Pinheiro, Péricles Cavalcanti, Petrúcio Maia, Ronaldo Bastos, Ronaldo Bôscoli, Ruy Guerra, Sérgio Natureza, Tibério Gaspar, Torquato Neto, Vinicius de Moraes, Vitor Martins e Waly Salomão.

Cantores(as): Alaíde Costa, Amelinha, Astrud Gilberto, Baby Consuelo, Biafra, Dóris Monteiro, Dick Farney, Elba Ramalho, Eliana Pittman, Elis Regina, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Fafá de Belém, Flora Purim, Gal Costa, Jair Rodrigues, Jane Duboc, Jorge Goulart, Leila Pinheiro, Lúcio Alves, Maria Bethânia, Maria Creuza, Marília Medalha, Marisa Gata Mansa, Maysa, Miltinho, Miúcha, Nana Caymmi, Nara Leão, Ney Matogrosso, Olívia Byington, Olívia Hime, Paulinho Boca de Cantor, Pery Ribeiro, Silvio César, Simone, Sylvia Telles, Teca Calazans, Tito Madi, Tony Tornardo, Wilson Simonal, Wanda Sá, Zélia Duncan, Zezé Motta e Zizi Possi.

Instrumentistas: Airto Moreira, Alex Malheiros, Armandinho, Arthur Maia, Barrosinho, Carlos Malta, César Camargo Mariano, Chico Batera, Cláudio Roditi, Dadi, Danilo Caymmi, Djalma Correia, Dominguinhos, Ed Lincoln, Edison Machado, Edu da Gaita, Fernando Leporace, Flavio Goulart, Franklin da Flauta, Gilson Peranzzetta, Heitor TP, Hélio Delmiro, Heraldo do Monte, Itiberê, João Gilberto, Jovino, Jacques Morelembaum, Jamil Joanes, José Roberto Bertrami, Jota Moraes, J. T. Meirelles, Laurindo de Almeida, Luis Carlos Vinhas, Luisão Maia, Luiz Alves, Luiz Avellar, Márcio Montarroyos, Mario Sève, Maurício Einhorn, Mauro Senise, Naná Vasconcelos, Nico Assumpção, Nivaldo Ornellas, Novelli, Oberdan Magalhães, Oscar Bolão, Oscar de Castro Neves, Osmar Milito, Pascoal Meirelles, Paulinho Braga, Paulinho Nogueira, Paulo Moura, Pepeu Gomes, Perinho Santana, Rafael Rabelo, Raul de Souza, Raul Macarenhas, Ricardo Silveira, Robertinho do Recife, Robertinho Silva, Roberto Guima, Rodrigo Lessa, Rosinha de Valença, Sebastião Tapajós, Tenório Júnior, Tião Neto, Tomás Improta, Victor Assis Brasil, Yamandu Costa, Zeca Assumpção e Zeca do Trombone.

Arranjadores(as) Aécio Flávio, Arthur Verocai, Chiquinho de Moraes, Claus Ogerman, Cristóvão Bastos, Erlon Chaves, Eumir Deodato, Gaya, Geraldo Vespar, Ian Guest, Laércio de Freitas, Lincoln Olivetti, Luiz Cláudio Ramos, Maurício Maestro, Paulo Jobim, Radamés Gnatalli, Rildo Hora, Rogério Duprat, Wagner Tiso e Waltel Blanco.

Bandas: A Barca do Sol, A Cor do Som, As Frenéticas, Azimuth, Banda Black Rio, Banda Mantiqueira, Banda Nova, Banda Veneno, Bebdegó, Boca Livre, Bossa Três, Brasil 66, Cama de Gato, Coisas Nossas, Doces Bárbaros, Grupo D’Alma, Grupo Um, Jongo Trio, Milton Banana Trio, Momento Quatro, MPB4, Nó em Pingo D’Água, Os Cariocas, Os Mutantes, Os Novos Baianos, Os Tincoãs, O Terço, Pau Brasil, Quarteto em Cy, Quarteto Novo, Quinteto Violado, Secos e Molhados, Som Imaginário, Tamba Trio, Trio Esperança, Trio Ternura, Tutti-Frutti e Zimbo Trio.

Referências

Albuquerque, Célio. 2015. 1973: O ano que inventou a MPB. Rio de Janeiro: Sonora.
Castro, Ruy. 2015. A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção. São Paulo: Companhia das Letras.
Faour, Rodrigo. 2021. História da música popular brasileira (2 vol.). Rio de Janeiro: Record.

Notas de rodapé

  1. A bem da verdade, o entendimento sobre a “MPB” por Faour se aproxima do nosso, o que se evidencia especialmente no volume II de seu livro ((Faour 2021), que parte dos anos 1970 e alcança 2020). Em quase todos os capítulos, a herança emepebística é posta em destaque, em hibridação com diversas estéticas ao longo das décadas cobertas (por exemplo, considerando o forte movimento do rock no Brasil, nos anos 1990).↩︎

  2. As regiões da prática estendida podem ser exploradas, evidentemente, em fases futuras da pesquisa.↩︎

  3. Tais conjuntos de obras serão detalhados num dos próximos capítulos.↩︎

  4. Em casos em que alguém atua em mais de uma categoria (por exemplo, compositor/letrista), optamos por aquela em que mais se notabilizou.↩︎