Uma breve discussão sobre estilo musical

Como já discutido no texto introdutório, o estilo musical se apresenta como um verdadeiro centro de gravidade da pesquisa. Neste capítulo, tentaremos elencar um conjunto de conceitos e reflexões, tendo como principal objetivo propor uma sistematização em relação a um tema que, claramente, envolve questões subjetivas.1

1 Contextos estilísticos

Iniciaremos a discussão definindo os contextos e delimitações envolvidos. Sem a pretensão de sermos histórica ou musicologicamente precisos (já que isso não é de grande relevância para nossa abordagem), consideremos a grosso modo, inicialmente, uma clivagem da produção musical que teria ocorrido em algum período da Idade Média. Como mostrado na Figura 1, num esquema simplificado em formato de árvore, é possível considerar a tradição musical oral (cuja origem é virtualmente impossível precisar) como representada por um tronco básico, a partir do qual se ramificaria a tradição musical escrita. Essa ramificação se evidencia não apenas pela introdução da nova tecnologia da notação das composições (consolidada gradualmente, bem entendido), mas também de sua documentação teórica, seja prescritiva ou analítica.

Figura 1: Representação esquemática e simplificada da distinção estilística entre músicas de tradição escrita e oral.

Alguns séculos depois desse (bastante impreciso) ponto temporal, aproximadamente com o advento da Revolução Industrial e, posteriormente, da nova era desencadeada pela Revolução Francesa e com o consequente fortalecimento econômico da burguesia nas grandes cidades, começaria a surgir no domínio musical uma nova tendência, brotando como um ramo da tradição oral, a música popular urbana, como representado na [fig-estilo02]. Esse novo tipo, ainda que não registrada pela notação em partitura,2 diferia da música de tradição oral que lhe deu origem pela inclusão de novos elementos, modelados da música praticada nas cortes e nas então recentemente criadas salas de concerto. A tonalidade – representada por seus aspectos inerentemente associados, como acordes, funcionalidade, modulações etc. – é, por certo, o fator central compartilhado pela música “erudita” (ou música de concerto, em sua designação mais adotada atualmente) e os novos gêneros populares. A música popular divergiria então de sua fonte – os gêneros folclóricos, essencialmente, mas não apenas, rurais – pelo ambiente de alturas em que se desenvolveu, ou seja, essencialmente tonal, em oposição aos contextos modais que prevaleciam na música de tradição oral precedente.

Figura 2: Representação esquemática e simplificada da distinção estilística entre músicas de tradição oral e música popular urbana.

Por outro lado, o ritmo pode ser visto como o fator principal de separação entre a música popular inicial e a música de concerto. Uma grande diversidade de configurações rítmicas – em sua maioria, derivadas de expressões originalmente coreográficas – começou a proliferar, dando origem ao que denominamos hoje em dia de gêneros de música popular (samba, choro, baião, jazz, rock, guajira, blues, bolero, rumba, tango, habanera etc.), incluindo seus inúmeros subgêneros. Com o passar do tempo, a divergência erudito/popular começou também a se acentuar em relação a outros aspectos da estrutura musical, surgindo especificidades que passariam a ser peculiares dos gêneros populares. É o que se observa, por exemplo, nos domínios da forma (a estrutura em 12 compassos do blues, o forma rondó do choro etc.), da instrumentação (as big bands, as exuberantes seções de percussão de escolas de samba ou da música cubana etc.) ou da harmonia (os chamados acordes “SubV”, o uso de tensões harmônicas como notas estáveis etc.).

No entanto, desde seu surgimento, a nova música popular tem sido distinguida da música de concerto não apenas por suas qualidades intrinsecamente musicais (como aquelas acima mencionadas), mas também por outras questões externas (envolvendo principalmente aspectos sociais e/ou econômicos), como se pertencesse a uma “baixa” e, implicitamente, menos valorada expressão cultural. Infelizmente, parte dessa visão ainda se mantém nos meios acadêmicos, embora haja atualmente uma forte e salutar tendência para que seja superada.

3 Regras e estratégias

Provavelmente, Leonard Meyer foi o pioneiro nos estudos sistemáticos sobre o estilo musical, a partir do que apresenta em seu influente livro Style and Music [meyer-style]. Dos vários conceitos e formulações propostos por Meyer, a dualidade regras/estratégias apresenta-se como um ótimo ponto de conexão com o desenvolvimento que é proposto neste capítulo.

Basicamente, as normas de estruturação musical tacitamente compartilhadas entre os compositores que habitam o mesmo contexto estético-temporal (por exemplo, uma sintaxe funcional específica, configurações rítmicas características, alternativas de estruturação formal etc.) formariam o conjunto de regras (rules)10 que, em última instância, estabelece as fronteiras estilísticas desse contexto. Nos termos apresentados nas notas introdutórias do projeto, as regras compartilhadas pelos compositores definiriam justamente os contornos da Prática Comum da MPB. A evidenciação desse comjunto de procedimentos e técnicas é, como já dito, um dos principais objetivos do projeto.

Por outro lado, o conjunto de preferências idiossincráticas de um determinado compositor em relação àquelas adotadas por outros membros do mesmo contexto, referentes a determinados aspectos musicais, constituiria, no entendimento de Meyer, um grupo de estratégias (strategies). Entenda-se que uma escolha composicional fortuita não caracterizará, por si só, uma estratégia, o que se daria apenas através de sua cristalização por recorrência. Isso nos traz um ponto de enorme importância para o estudo do estilo, que é justamente a dimensão estatística, aspecto também enfatizado por Meyer em seu livro.11

4 Marcadores estilísticos

Outro conceito de Meyer com grande importância para o presente trabalho é o de marcadores estilísticos (stylistic markers).12 Basicamente, os marcadores são aspectos da estrutura musical com a propriedade de definir –- ou ajudar a definir, juntamente com outros marcadores – um determinado estilo.

Em nosso entendimento sobre o conceito, devidamente adaptado aos objetivos e condições do projeto, um marcador estilístico pode sugerir dois tipos de relação, considerando um determinado ator (digamos, o estilo de Caetano Veloso) e um contexto (seja ele o subconjunto-alvo, o superconjunto da “música popular do Brasil”, ou os subconjuntos de controle, “JAZZ”, “SAMBA” ou “CHORO”.): centrípeta, que sugere a existência de uma tendência razoável de que o ator pertença ao contexto em questão, ou então centrífuga, neste caso, sugerindo que a tendência de pertencimento é baixa ou virtualmente desprezível.

A Figura 10 propõe uma ilustração genérica da ação desses conceitos considerando um ator hipotético \(x\) e um contexto \(C\) de referência. Dois marcadores estilísticos – \(m_1\) e \(m_2\) – apresentam comportamentos distintos: enquanto o primeiro tende a manter \(x\) em \(C\) (portanto, um marcador centrípeto), a tendência de \(m_2\) é oposta, sugerindo uma ação centrífuga.

Figura 10: Representação esquemática da ação centrípeta e centrífuga, respectivamente, dos marcadores estilísticos \(m_1\) e \(m_2\) considerando um ator genérico \(x\) e um contexto \(C\).

De modo prático, marcadores estilísticos são associados a atributos específicos, melódicos ou harmônicos (por exemplo, número de tonalidades distintas empregadas no corpus, presença de classes de acordes de empréstimo modal, configurações rítmicas predominantes etc.).13 Os marcadores são avaliados qualitativa ou quantitativamente (neste caso, considerando grandezas percentuais).

Além da natureza qualitativa ou qualitativa, os marcadores podem ser classificados de acordo com a intensidade (ou impacto) com que atuam na tarefa de determinar o pertencimento de um ator a um determinado contexto.14 Ou seja, um marcador pode ser considerado como “forte”, “fraco” ou mesmo irrelevante nesse sentido. De todo modo, é possível combinar atributos pertencentes a um determinado domínio estrutural (por exemplo, associados a tipos acordais) e acioná-los numa única avaliação (ver Figura 11). Observe-se que as tendências podem se reforçar ou conflitar (como no caso do exemplo), resultando dessa ação combinada um único marcador estilístico.15

Figura 11: Ação de um conjunto de marcadores estilísticos sobre \(x\) em C com tendência resultante centrífuga.

Referências

Huron, David. 2006. Sweet Anticipation: Music and the Psychology of Expectation. Cambridge: The MIT Press.
Meyer, Leonard. 1989. Style and Music: Theory, History, and Ideology. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
Snyder, Robert. 2001. Music and Memory: An Introduction. Cambridge: The MIT Press.
Tinhorão, José Ramos. 2015/1969. O samba agora vai...: A farsa da música popular no exterior. São Paulo: Editora 34.
———. 2013/1990. Pequena história da música popular: segundo seus gêneros. São Paulo: Editora 34.
White, Christopher. 2022. The Music in the Data: Corpus Analysis, Music Analysis, and Tonal Traditions. New York: Routledge.

Notas de rodapé

  1. Nesse sentido, recomendamos como leitura complementar o capítulo intitulado “What is style?(White 2022, 54–90), que apresenta uma abordagem aprofundada sobre a questão e com vários pontos de contato com a perspectiva deste projeto.↩︎

  2. Como um fenômeno bem mais recente, a produção composicional de vários setores da música popular passou a ser também registrada em partituras, o que decorreu principalmente do aumento da complexidade e da necessidade de incremento da disseminação das obras, através de publicação e comercialização. É o caso, por exemplo, do que observamos com os gêneros que viriam a formar o choro brasileiro (como a polca e o maxixe) e o jazz norte-americano (como o ragtime), já a partir da segunda metade do século XIX (fenômeno semelhante ocorreu, claro, também em outros contextos, como o do tango argentino ou de canções italianas, francesas etc.).↩︎

  3. Ver a discussão apresentada na seção Introdução deste livro.↩︎

  4. Tais designações trazem à tona uma questão problemática, a saber, uma diferenciação precisa e sistemática entre conceitos não inteiramente congruentes e distintos, como movimento estético, gênero/subgênero, contexto histórico etc. Dada a complexidade que adviria de uma tal investigação, optamos por elaborar um capítulo específico sobre essa questão (que se segue ao presente), no qual apresentaremos nossa visão peculiar sobre essa questão e a discutiremos com maior propriedade e profundidade.↩︎

  5. Ver, entre outros autores, Tinhorão (2015/1969) e Tinhorão (2013/1990).↩︎

  6. As diversas hipóteses serão formalmente definidas no momento oportuno.↩︎

  7. A partir deste ponto, o subconjunto “MPB”, considerando sua importância para o presente trabalho, passa a ser alternativamente denominado subconjunto-alvo, abreviado como SA.↩︎

  8. Evidentemente, a figura exemplifica apenas parte do conteúdo do subconjunto, que se subentende como bem mais extenso e com mais (e, certamente, muito mais complicadas) demarcações internas.↩︎

  9. O processo será detalhado mais adiante.↩︎

  10. Ver (Meyer 1989, 20–21).↩︎

  11. Ver Meyer (1989, 57). Esse aspecto também se associa a questões mais profundas relacionadas a processos cognitivos, como a noção de aprendizado estatístico (ver, por exemplo, Huron (2006)) e as estruturas e funcionalidades dos diferentes tipos de memória que operam no reconhecimento do discurso musical (ver Snyder (2001)). Em outro ponto de seu livro, Snyder trata ainda do conceito denominado “efeitos subjetivos de agrupamento”, que são aprendidos culturalmente (subjective learned grouping effects). De acordo com esse autor, tais efeitos são estabelecidos a partir da audição de muitas peças de mesmo estilo. Assim, “tradições formam molduras dentro das quais desvios de normas estilísticas podem ser apreciados e lembrados” (Snyder 2001, 52). Devido à complexidade desses temas e ao escopo limitado deste capítulo, passamos ao largo de um exame mais detalhado dessas abordagens, porém destacando suas importâncias e grande relevância para um entendimento pleno do estilo musical.↩︎

  12. Ver Meyer (1989, 61).↩︎

  13. Os atributos, classificados como primários e secundários, serão apresentados em detalhes oportunamente.↩︎

  14. Ambos os aspectos – natureza e impacto – serão discutidos em detalhe num capítulo futuro.↩︎

  15. Importante ressaltar que a resultante não é normalmente calculada pela diferença de tendências centrípetas e centrífugas, mas depende das qualidades dos marcadores (algo a ser especificamente discutido nas análises), o que torna sua determinação complexa e algo subjetiva.↩︎