Introdução

Diversificada, sofisticada, surpreendente e, principalmente, bela são adjetivos que podem ser atribuídos em termos gerais à música popular praticada no Brasil, em suas incontáveis expressões, compositores, gêneros e épocas. Trata-se de um patrimônio cultural de valor incalculável que não tem paralelos no planeta, uma enorme riqueza que traz aos brasileiros muito orgulho e carinho.

Isso posto, é natural – e, claro, bastante oportuno – que a música popular do Brasil seja tomada como um atraente e rico objeto de estudo. Especialmente nos tempos mais recentes, muitos trabalhos acadêmicos têm sido publicados com as mais diversas abordagens, não apenas sintonizadas a importantes questões contextuais, históricas, biográficas, estéticas, sociais, políticas, raciais, de gênero etc., mas também, claro, musicológicas e/ou etnomusicológicas, trazendo luzes cada vez mais abrangentes, precisas e detalhadas sobre esse fascinante tema.

Entretanto, considerando especificamente o escopo no qual se insere a presente iniciativa – ou seja, dos estudos sistemáticos em música –, embora observe-se o despertar recente de um grande interesse acadêmico por temas associados, o quadro ainda é incipiente, se comparado à situação das demais abordagens. Este projeto tem, justamente, como principal motivação contribuir para diminuir essa lacuna. Associa-se a uma pesquisa de amplo âmbito, iniciada em 2017 e vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dentro da linha de pesquisa Poéticas da Criação Musical, subordinada à área de Processos Criativos.

Em termos mais específicos, este projeto tem um propósito bastante ambicioso, a saber, determinar de modo sistemático os contornos do contexto estético-musical que informalmente é denominado Música Popular Brasileira, mais conhecido pelo acrônimo MPB. O principal obstáculo dessa tarefa se apresenta já na clara definição do que seria de fato a MPB. Tendo nosso intuito um caráter primordialmente técnico, estrutural, não desejamos nos embrenhar a fundo em questões complexas (especialmente relacionadas a aspectos sociais, históricos e políticos) na busca de definições, mesmo porque não cremos que haja perfeito consenso na estrutura especializada sobre os limites históricos-estéticos da MPB. Entretanto, não podemos – nem devemos – ignorar aspectos extramusicais em nossa investigação, sob pena de realizarmos um estudo (na melhor das hipóteses) musicalmente “correto”, porém frio, descontextualizado e desplugado dos acontecimentos e pensamentos que contribuíram em muito para moldar os rumos tomados pelos compositores e compositoras do período, cujos reflexos foram profundamentos esculpidos em suas respectivas obras.

Por outro lado, a MPB não é, de modo algum, para nós como um fóssil recentemente descoberto ou um objeto distante no espaço ou no tempo. Nós a vivemos, admiramos, amamos, a tornamos virtualmente parte importante de nossas vidas. Em outros termos, é possível dizer que nós, como coordenadores e pesquisadores desse projeto, na qualidade de habitantes e, por que não, atores do contexto em questão, sentimo-nos habilitados e qualificados para estudá-lo. Ainda que seja difícil definir com a devida precisão a essência e os limites temporais desse período para alguém que não teve a mesma vivência (digamos, uma adolescente roqueira, um amigo estrangeiro, por exemplo), de um modo geral, sabemos razoavelmente bem do que se trata quando conversamos ou ouvimos falar sobre o assunto. É, ao menos, um bom ponto de partida.

Mas, afinal, o que é a MPB? Podemos começar a examinar essa questão considerando o que ela não é. A MPB certamente não é um gênero musical, mas abarca uma enorme diversidade deles, por exemplo, samba, bossa-nova, afoxé, baião, bolero, xote, choro, rock, blues etc., etc. Mais relevante ainda, compositores da MPB não atuam exclusivamente em um determinado gênero, pelo contrário, a regra é que experimentem diversos deles em suas obras. Considere, como exemplo, a grande diversidade que existe nesse aspecto na música de Tom Jobim, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre muitos outros. Mesmo aqueles e aquelas que atuam mais caracteristicamente num nicho do espectro de gêneros (Rita Lee, Alceu Valença, Paulinho da Viola etc.), não compõem unicamente peças de seus gêneros preferenciais.

Consequentemente, a MPB também não é um estilo. Mais precisamente, ela resulta da combinação de um formidável número de preferências estilísticas pessoais/composicionais que apresentam tanto características idiossincráticas quanto notáveis pontos de contato entre si. Determinar de maneira precisa e sistemática esses elementos corresponde exatamente ao cerne deste projeto. Em outros termos, nosso propósito é investigar profundamente o que denominaremos a Prática Comum da MPB.1 Tal investigação tem como base um sólido e complexo aparato teórico-metodológico, elaborado, desenvolvido e aperfeiçoado em estágios precedentes da pesquisa, que podem ser sucintamente descritos como se segue:2

Referências

Almada, Carlos. 2022. A Harmonia de Jobim. Campinas: Editora da Unicamp.
———. 2023. A Melodia de Jobim. Campinas: Editora da Unicamp.
Tymoczko, Dmitri. 2011. A Geometry of Music: Harmony and Counterpoint in the Extended Common Practice. Oxford: Oxford University Press.

Notas de rodapé

  1. O termo mantém uma relação de analogia com o conceito conhecido como Prática Comum (Common Practice), associado ao período composicional no qual a tonalidade foi o elemento invariante na criação musical, a despeito das diferenças específicas entre compositores e épocas, considerando um arco temporal de aproximadamente 300 anos, 1600-1900. Recentemente, Tymoczko (2011) propôs a ideia de uma Prática Comum Estendida (Extended Common Practice), abarcando tanto obras renascentistas quanto aquelas pós-tonais e mesmo parte da música popular (especialmente, o jazz e o rock).↩︎

  2. As etapas iniciais contaram com a ajuda de uma excelente equipe de estudantes, graduandos e pós-graduandos da Escola de Música da UFRJ (em ordem alfabética): Ana Miccolis, Claudia Usai, Eduardo Cabral, Gabriel Barbosa, João Penchel, Igor Chagas, Max Kühn e Vinicius Braga. Atualmente, o grupo conta com a participação de Matheus Forli, como bolsista de Iniciação Científica.↩︎

  3. Mais precisamente, os 10 genera atualmente considerados na pesquisa. Esse tópico será descrito em detalhes oportunamente (ver também o Glossário de termos).↩︎

  4. O que é regido pelo modelo teórico da Filtragem Melódica, a ser oportunamente descrito.↩︎